"Eu sou a vida: Eu não sou a morte": TEXTO
Qorpo Santo
EU SOU A VIDA; EU NÃO SOU A MORTE
Comédia em dois atos
PERSONAGENS
Lindo
Linda
Rapaz
Manuelinha, filha de Linda
ATO PRIMEIRO
Lindo e Linda
LINDA - (cantando)
Se não tiveres cuidado,
Algum Cão danado
Te há de matar;
Te há d'estraçalhar!
LINDO -
Eu sou vida;
Eu não sou morte!
E esta minha sorte;
É esta minha lida!
LINDA -
Ind'assim, toma sentido!
Vê que é tudo fingido;
Não creias algum louvor:
Sabei: - Te trará dor!d
LINDO -
Se desrespeitará
A vida minha?
A desse, asinha,
- Ao ar voará!
LINDA -
Não te fies, meu Lindinho,
Dos que te fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos; e não coram!
LINDO -
Sabei, ó Lindinha:
Os que me maltratam
A si se matam:
Tu ouve; Anjinha!?
LINDA - Meu Lindo, tu sabes quanto te amo! Quanto te adoro!
Sim, meu querido amigo, quem melhor conhece do que tu o amor que neste peito
mortal, mas animado por esta alma (pondo a mão na testa) imortal, te consagro!?
Ninguém, certamente. (Pegando-lhe na mão.) Adoças-me pois sempre com tuas
palavras; com teus afetos; com teu amor ainda que fingido! Sim, meu querido
amigo, bafeja-me sempre com o aroma de tuas palavras; com o perfume de tuas
expressões! Sim, meu querido, lembra-te que hei sido baixel, sempre batido das
tempestades, que por cinco ou seis vezes quase há soçobrado; mas que por graça
Divina ainda viaja nos mares tempestuosos da vida!
LINDO - Ah! minha adorada prenda, tu que foste a oferenda
que me fez o Criador, em dias do mais belo amor, que pedes? Como pedes àquele
que tanto te ama; mais que à própria cama?
LINDA - Há! há! há! meu queridinho; quanto me deste; quanto
me felicitaste com as maviosas expressões desses teus bofes, ou pulmões -
envoltórios dos corações!
LINDO - Estimo muito. E eu não sabia que tu tinhas o dom de
adivinhar que sempre que vou apalpar, sinto bater neste peito - pancadas de
ambos os lados; isto é, do esquerdo e direito. O que por certo convence que
neste vácuo estreito abrigo dois grãos corações.
LINDA - Há! há! há! Eu não digo (à parte) que este figo me
foi enviado por cão danado? Quer me fazer crer que tem dois corações. (A ele:)
Amiguinho, ainda não sabes de uma cousa. Queres saber? Eu vô-la digo Hem? não
responde!
LINDO - O que é; o que é, então!!?
LINDA - Ora o que há de ser! Ê que tu tens dois corações
dentro do peito, eu tenho duas cabeças por fora dos largos seios.
LINDO - Tu és o diabo! Ninguém pode contigo! És tripa que
nunca se enche, por mais que dentro se lhe bote. És vasilha que não chocalha.
És... o que eu não quero dizer, porque não quero que se saiba.
LINDA - Pois já que me fazes comparações tão sublimes, eu
também vou te fazer uma de que muito te deves agradar. Sabes qual é, não? Pois
eu te digo: és o diabo em figura de homem! És... és... (atirando com as mãos e
caminhando de um para outro lado) és... és! és! E então, que mais queres!?
Quero comparações mais bonitas; mais finas; delicadas; e elevadas; ao
contrário, ficaremos - figadais inimigos. Tem entendido, Sr. Sultãozinho? Pois
se não tiver entendido, entenda!
LINDO - Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha
imaginação abundante, crescente, e algumas vezes até demente - ocorrem! Lá vai
uma: A Sra. é pêra que não se come!
LINDA - Essa não presta!
LINDO - (batendo na testa) É preciso arrancar desta cabeça,
ainda que seja com - algum gancho de ferro – uma comparação que satisfaça a
esta mulher; ao contrário é capaz de...
LINDA - E não se demore muito com as suas reflexões! Quero a
comédia.
LINDO - Qual comédia, nem comédia! O que me comprometi a
fazer-lhe foi comparação bonita; e não comédia. Espere, portanto. (Torna a
bater na cabeça, mais no crânio. À parte:) Já que da testa não sai, vejamos se
tiro do crânio! Ah! sim; agora aparece uma; e que bela; que interessante; que
agradável; que bonita; que delicada; que mimosa - é a comparação que vou fazer
da Sra. D. Linda! ~ mesmo tão linda como ela! Tão formosa, como a flor mais
mimosa! Tão rica, como a jorrosa bica! Tão fina, como a ignota si na! Tão...
tão... tão... Quer mais? Quer melhor? não lhe dou; não lhe faço; não quero! (A
correr em roda dela:) Não lhe dou; não lhe faço; não lhe dou; não lhe faço; não
quero; não posso; já disse. (Repete duas vezes esta última negativa.)
LINDA - Este menino é o diabinho em figura humana! Dança,
salta, pula, brinca... Faz o diabo! Sim, se não é o diabo em pessoa, há
ocasiões em que parece o demônio; enfim, o que terá ele naquela cabeça!? (Lindo
medita em pé e com uma mão encostada no rosto.) Pensa horas inteiras, e nada
diz! Fala como o mais falador, e nada expressa! Come como um cavador, e nada
obra! Enfim, é o ente mais extraordinário que meus olhos têm visto, que minhas
mãos têm apalpado, que meu coração tem amado!
LINDO - Senhora: vou me embora (Voltando-se rapidamente para
ela, com aspecto muito triste, e salpicado de indignação:) Vou; vou, sim! Não a
quero mais ver; não sou mais seu!
LINDA - (com sentimento) Cruel! Tirano! Suíço! Lagarto!
Bicho feio! Mau! Onde queres ir? Por que não te casas, inda que seja com uma
negra quitandeira?
LINDO - Também eu direi; Cruel! Ingrata! Má! Feia! Por que
não te ligas ainda que seja a um preto cangueiro?
(Entra um rapaz todo paramentado, bengala, 6culos, etc.)
O RAPAZ - (para um, e depois para a outra) Vivam, madamas;
mais que todos!
LINDO - (pondo-lhe as mãos, e empurrando) O que quer pois
aqui!? Não sabe que esta mulher é minha esposa!?
O RAPAZ - Dispense, eu não sabia! (Voltando-se para Linda:)
Mas Sra., parece-me...
LINDA - O que mais?! Não ouviu já ele dizer que sou mulher
dele!? O que mais quer agora? Agora fique solteiro, e vá casar com uma enxada!
Não quer acreditar que não há direito; que ninguém faz caso de papéis borrados;
que isso são letras mortas; que o que serve, o que vale, o que dá direito – é a
aquisição da mulher!? Que quem se pega com uma, essa tem, e tudo o que lhe
pertence! Sofra agora no isolamento, e na obscuridade! Seja solitário! Viva
para Deus! Ou meta-se num convento, se quiser companhia. Não vá mais à reunião
de outros homens.
O RAPAZ (muito admirado) Esta mulher está doida! Casou
comigo o ano passado, foram padrinhos Trico e Trica; e agora fala esta
linguagem! Está; está! Não tem dúvida!
LINDO - Já lhe disse (muito formalizado) que fiz esta
conquista! Agora o que quer?! Conquistei - é minha! Foi meu gosto: portanto,
safe-se, senão o mato com este estoque! (Pega em uma bengala e arranca um palmo
de ferro.)
LINDA - Não precisa tanto, Lindo! Deixai-o cá comigo... Eu
basto para nos deixar tranqüilos!
O RAPAZ - O Sr. tem estoque, pois eu tenho punhal e
revólver! (Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver.) Agora,
de duas uma: ou Linda é minha, e triunfa o Direito, a Natureza, a Religião ou é tua, e vence a barbaria, a natureza em
seu estado brutal, e a irreligião!
LINDA - (para o rapaz) Mas eu o não quero mais; já o mandei
para o leilão três vezes! Já o vendi em particular quinze! Já o aluguei oito! E já o libertei, seguramente por dez
vezes! Não quero nem vê-lo, quanto mais tê-lo!
(O rapaz, gaguejando,
querendo falar, e sem poder.)
LINDA - Até a voz de sabiá, lhe tiraram! Até o canto de
gaturama, lhe roubaram! E ainda quer se meter comigo!
O RAPAZ - (fazendo trinta mil caretas para falar, e sem
poder; ultimamente, desprende as seguintes palavras:) Ah! Mulher! mulher!
diabo! diabo! (Atira-se a ela, o revólver cai no chão; passa a derramar
lágrimas, com os braços nos ombros dela, por espaço de cinco minutos.)
LINDO - (querendo levantar o revólver, que estava perto do
pé do rapaz; este dá-lhe um couce na cara.) Safa! Pensei que a mulher já o
tinha matado com o abraço, metendo-lhe nas entranhas todo o veneno da mais
venenosa cascavel; e ele ainda dá ares de vida, e de força, pregando~me na cara
a estampa de seus finos pés! - um morto que vive! Bem dizia certo médico que
era capaz de conservar vivo um cavalo depois de morto, por espaço de oito
meses, sempre a andar; e creio que até a rinchar! - Demo! (Atirando com a
bengala.) Não quero mais armas!
O RAPAZ E LINDA - (desprendem-se dos braços um do outro;
desce então uma espécie de véu, de nuvens, sobre os dois. Lindo quer abrigar-se
também, e não pode: chora; lamenta; pragueja. Levanta-se rapidamente a nuvem,
torna a descer sobre os três; mas separando aquele. Ouve-se de repente uma
grande trovoada; vêem-se relâmpagos; todos tremem, querem fugir, não podem.
Gritam:) Punição Divina! (E caem prostrados de joelhos.)
SEGUNDO ATO
Cena Primeira
(Uma jovem vestida de negro com uma menina por diante.
Atravessa um cavalheiro.)
A JOVEM - (para este) Senhor! Senhor! por quem sois,
dizei-me onde está o meu marido, ou meu esposo, o meu amigo! (O cavalheiro
embuçado numa capa desembuçando-se) Esquecestes que ainda ontem aqui o
assassinastes com os horrores de tuas crueldades!?
ELE - Mulher! tu me conheces! Sabes quem sou, ou não sabes?
(À parte:) Pérfida, cruel, ingrata! Vê seu marido diante de si, e apresenta-se
a ele vestida de negro, luto que botou por sua morte.
ELA - (afastando-o com as mãos, como querendo fugir) Quem
sois vós, ingrato, que assim me falais!?
ELE - Ainda perguntas. (Sacudindo a cabeça.) Ainda
respondes. Quem sou eu? Desconheces o Lindo, teu afetuoso consorte, e ainda
perguntas?!
ELA - Tirano! Foge de minha presença! Desprezaste os meus
conselhos, não quiseste ouvir-me, e queixas-te. Bárbaro! Cruel! Eu não te disse
que te não fiasses de pessoa Alguma! Por que te fiaste!?
ELE - E tu, Maga Circe: para que me iludiste! Para que me
disseste que eras solteira, quando é certo eras casada com o mais belo rapaz!?
ELA - Eu... eu... não disse: mas você... não ignorava; bem
sabia que eu era mulher de seu primo! Ignorava? Penso que não! Para que me
botou fora! Para que me procurou?
ELE - Não sei onde estou, não sei onde me acho, não sei o
que faça. Esta mulher (atirando-se, como para agarrá-la) é o demo em pessoa; é
o ente mais admirável que eu tenho conhecido! É capaz de tudo! Já não digo de
revolucionar uma província, de pôr em armas e mesmo de destruir um Império! Mas
de revolucionar o mundo, de fazer, de converter os grãos em terras e as terras
em águas; de, se tal tentasse, fazer do globo que habitamos - peteca!
ELA - É muito exagerado. Que atrevido conceito de mim forma!
Que audácia! Nem ao menos quer ver que fala diante de uma filha de nove a dez
anos!
ELE - Que fazeis por estas paragens, onde não vos é mais
dado vir, porque já vos não pertencem?!
ELA - (com ar satírico e mordaz) Procuro-vos, cruel.
ELE - Sim: procuras-me para de novo cravar-me o punhal da
traição! És bem má... és muito má!
A MENINA - Papai! (Aproximando-se dele.) Que tem? Está
doente? Me conte: - o que lhe aconteceu? O que foi? Diga, Papai) diga, diga! Eu
o curo, se estiver doente. E se não estiver, a Mamãe há de curar!
ELE - (tomando a menina nos braços; abraçando-a e
beijando-a) Minha querida filha! Quanto adoçam a minha existência tuas ternas e
maravilhosas palavras! Quanto transformam os furores de meu coração, as doçuras
de tuas meigas expressões. [Para ambas:] Quanto apraz-me ver-vos! [Para a
menina:] Ah! sim! Tu és o fruto de um amor.. . Sim, és! Tua mãe, sem que eu
soubesse, depois casou; procurou juntar-se a mim... iludia-me! Mas, querida
filha, sinto uma dor neste peito. (Desprendendo-se da filha.) Este coração
parece traspassado de dor. Esta alma, repassada de amargura. Este corpo, um
composto de martírios! Céus... (Arrancando os cabelos) eu tremo! Vacilo!...
ELA - Célebre cousa! Quem havia de supor que este pobre
homem havia de ficar no mais deplorável estado! Seu juízo é nenhum! Sua
vista... não tem; é cego! Seus ouvidos, não têm tímpanos; já não são outra
cousa mais que dois formidáveis buracos! Que hei de eu fazer dele!?
(Entra o Rapaz armado, vestido de militar, e com a mão no
punho da espada)
O RAPAZ - Hoje decidiremos (à parte) quem é o marido desta
mulher, embora esta filha fosse fabricada pelo meu rival. (Desembainha a espada
e pergunta para o rival:) A quem pertence esta mulher? A ti que a roubaste...
que lhe deste esta filha? Ou a mim que depois com ela liguei-me pelo sangue;
pelas Leis civis e eclesiásticas, ou de Deus e dos homens!? Fala! Responde! Ao
contrário, varo-te com esta espada!
LINDO - Ela quis; e como a vontade é livre, não podeis ter sobre
ela mais direito algum!
O RAPAZ - Em tal caso... e se ela amanhã disser que não
quer? E se o mesmo fizer no dia seguinte para com outro? Onde está a ordem, a
estabilidade em tudo que pode convir às famílias e aos Estados!? Onde iríamos
parar com tais doutrinas!? O que seria de nós? de todos!?
LINDO - Não sei. O que sei é que as vontades são livres; e
que por isso cada qual faz o que quer!
O RAPAZ - Pois como as vontades são livres e cada qual faz o
que quer; como não há leis, ordem, moral, religião!... Eu também farei o que
quero! E porque esta mulher não me pode pertencer enquanto tu existires -
varo-te com esta espada! (Atravessando-o com a espada; há aparência de sangue.)
Jorra o teu sangue em borbotões. Exausto o corpo, exausta a vida! E com ela
todas as tuas futuras pretensões e ambições! Morre (gritando e arrancando a
espada), cruel! e a tua morte será um novo exemplo - para os Governos; e para
todos os que ignoram que as espadas se cingem; que as bandas se atam; que os
galões se pregam; não para calcar, mas para defender a honra, o brio, a
dignidade, e o interesse das Famílias! A honra, o brio, a dignidade, a
integridade Nacional!
(Lindo cai sobre um cotovelo; a mulher cobre-se com um véu e
fica como se estivesse morta; a menina olha admirada para tão triste
espetáculo.)
O RAPAZ (voltando-se para a mãe e a filha) De hoje em
diante, Senhora, quer queiras, quer não, serás minha mulher, consorte, esposa!
~ tu, minha querida menina, continuarás a ser a mimosa dos meus olhos, a flor
que aromatiza; a santa que me diviniza! Eis como Deus ajuda a quem trabalha!
Depois de milhares de trabalhos, incômodos, perdas e perigos! Depois de
centenas de furtos; roubos; e as mais negras atrocidades! Depois de uma
infinidade de insultos; penas; crueldades; o que não pude vencer, ou fazer
triunfar com a pena, razões, discursos, acabo de fazê-lo com a espada!
(Estende esta; e assim deve terminar o Segundo Ato; e mesmo
findar a comédia, que mais parece - Tragédia.)
Maio 16 de 1866.
Por José Joaquin de Campos Leão Qorpo-Santo.
*
Já se vê pois que a mulher era casada, foi antes deflorada,
depois roubada ao marido pelo deflorador, etc.; que passado algum tempo
encontrou-se e juntou-se a este; que o marido sentou praça como oficial; e
finalmente que para reaver sua legítima mulher, foi-lhe mister dar a morte
física ao seu primeiro amigo, ou roubador.
São portanto as figuras que nela entram:
Lindo, roubador.
Linda, mulher roubada.
Rapaz ou Japegão, legítimo marido.
Manuelinha, filha.
Comentários
Postar um comentário